Sobre chinelos
Sobre chinelos
Por Adriana Kairos
Muitos são os motivos que me levam a fazer o que faço da vida, mas talvez o principal deles seja porque eu já conheci a desesperança. Quando eu tinha apenas 30 anos de idade me sentia uma senhora sem perspectiva ou futuro. Mãe de dois filhos, desempregada, desqualificada para o mercado d trabalho pois me faltava terminar o ensino médio, nada sabia de informática e não tinha um segundo idioma para me diferenciar. Meu currículo carregava longos anos no caixa de alguns supermercados e uma vasta coleção de cursinhos desatualizados que fiz no SENAC quando era adolescente. De nada me servia aquilo tudo, de nada servia eu na vida, pensava. Já não era mais a Adriana, chamavam-me de mãe do Raul, mãe do Hugo, mulher do Adilson, filha da dona Antônia e do seu Zezito. Minha identidade sumia debaixo da poeira dos meus chinelos a arrastar meus filhos à escola, consultas médicas, atividades esportivas e a igreja. Tentando, sem sucesso, encontrar um projeto que os ajudassem ampliando suas oportunidades com a educação, um cursinho de idiomas, um preparatório para uma boa escola, alguma coisa que os afastassem dos perigos das ruas cada vez mais difíceis de transitar da Maré, mas tudo era inacessível demais para mim. Sentia-me invisível a todos, sem dinheiro até para as coisinhas mais simples como oferecer um picolé aos meus meninos depois da aula. Meus sonhos de carreira no magistério que amanhei durante uma vida inteira, aquela altura já haviam se arrebentado como as tiras de um chinelo velho. Desesperada por um nova colocação no mercado de trabalho, panfletando currículos como quem distribui a própria vida sem esperança de mudança, só porque não sabe mais para onde correr e o que fazer. Um dia, uma querida amiga apareceu na minha casa como que por encanto. “Dri, vamos fazer faculdade! Tem um monte de gente passando no vestibular. Você sempre quis ser professora. Essa é a sua chance.” Não me esqueço dessas palavras e nem desse dia, ri da minha amiga. Disse que jamais conseguiria entrar na universidade, ainda mais uma pública, lembrei-a de que eu tinha duas crianças para cuidar e de que era um emprego que me ajudaria naquele momento. Além do mais, eu tinha muita vergonha de passar na porta daquele Pré-Comunitário. Era, e ainda é, um local muito bonito, cheio de jovens diferentes, descolados, usando umas roupas distintas às minhas e sapatos. “Você tá louca, amiga. Eu não tenho nem roupa para entrar naquele lugar. Não insista. Eu estou de chinelos.” Mas que bom que ela insistiu e me arrastou até ali. Hoje aqui estou eu, professora formada em Letras Português/Espanhol pela UFRJ, terminando a minha pós -graduação em Psicopedagogia e trabalhando pela minha favela. Pelo menos era o que eu achava até essa última sexta-feira, dia 11/03/22, dezesseis anos após esse fato, quase uma hora depois de ter acabado de enviar a todos vocês uma carta de prestação de contas em que eu informava que não consegui fechar as contas esse mês.
Há pelo menos três dias vinha conversando com uma mãe pelo WhatsApp procurando entender qual a sua dificuldade com as crianças e convidando-a para ir nos visitar. Como todos aqui já sabem, esse projeto funciona com a contribuição de vocês e de algumas famílias que, após entrevista, avaliamos se conseguem ou não pagar um valor mensal pelo serviço. As famílias que não conseguem pagar são beneficiadas pela adoção de vocês, são os nossos bolsistas50% ou integrais. A cobrança dessas mensalidades é importante para o pagamento das horas/aulas dos professores e da secretária que precisei convocar para me ajudar enquanto me reabilito por causa da cegueira. Continuo batalhando os editais que aparecem, mas até agora não foi possível a contemplação em um certame para aquisição de um recurso seguro para a manutenção do projeto.
Após muita insistência, a mulher foi ao meu encontro. Encrudescida pela vida, falava sempre com um tom de rancor e desalento. Agarrada as filhas pelas mãos me contou a sua história, da sua angustia e aflição por não saber ensinar os deveres de casa das suas filhas por lhe faltar instrução e do quanto um emprego faz falta a ela. Falei do programa Quintão F1e de todos os projetos atrelados ao reforço escolar que as suas meninas teriam se estivessem estudando com a gente e de todos os benefícios que ela mesma, como mãe , teria ao traze-las ao curso. Ela chorou e me disse que tudo era bom demais, contudo que nem com o desconto ela poderia manter as meninas ali. Nos despedimos com um emocionado abraço e antes de que eu fechasse o portão ela me disse uma última coisa que me fez repensar o que estou fazendo. “Só entrei aqui porque as meninas insistiram e a moça que fica na recepção abriu rápido o portão. Quando vi essa fachada logo pensei que aqui não era lugar para mim nem as minhas filhas. Que um lugar bonito desses não é para pobre. Morri de vergonha de entrar porque eu e as meninas estamos mal vestidas e de chinelos.”
Eu sei que vocês não têm nada a ver com esse rolê, que a afetada por toda essa situação sou eu mesma. Mesmo assim, como quando eu panfletava os meus currículos por não saber mais para onde e como correr, o que fazer, como fazer, quero pedir a todos que por favor, divulguem esse trabalho. Gostaria de poder oferecer gratuitamente esse serviço a mais filhos de mulheres como essa. Tragam novos amigos que sejam sensíveis a dor das mulheres faveladas, a educação aos filhos dessas mulheres , ao futuro que se aproxima e que estará nas mãos dessas crianças. Por favor, eu peço, estou reformulando o nosso portfólio para apresentar a qualquer que queira ver, logo que estiver pronto eu avisarei a vocês e quem quiser mostre a empresários, gente boa que queira ajudar.
Reafirmo o meu convite para um café pessoalmente comigo em nosso projeto ou em outro local qualquer. Não tenho nada a esconder, trabalho com afinco e lisura, preciso de ajuda para continuar.
Ajudem esse projeto que têm se dedicado a levar mais que conhecimento as crianças e adolescentes da Maré, mas também a oportunidade de sonhar e conquistar um futuro diferente e construir, consequentemente uma sociedade mais justa e fraterna.
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