Os improváveis

 

Os improváveis

 

Por Adriana Kairos

 

“Não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica. A questão é: sua base ideológica é inclusiva ou excludente?” (FREIRE.)

 

Normalmente, recebemos em nosso espaço o aluno que a escola já desacreditou, a família não sabe mais o que fazer para motivá-lo e outros profissionais já desistiram dele. Nossos alunos não apresentam o perfil daqueles que estampam fachada de cursinho da moda apresentando altos e grandes rendimentos para a ilusão meritocrática dos pais e a vaidade mercadológica do dono do cursou da escola. Nossos alunos, geralmente, são os improváveis.

 De acordo com essa linha de montagem que se tornou a escola acompanhada dessa educação bancária que exige dos nossos jovens a resposta imediata para as soluções propostas pelo mercado da Era do Conhecimento. Não há mais tempo para maturar a aprendizagem. Desta forma, torna-se mais difícil, e para alguns até mesmo improvável que estudantes das classes mais populares e com menos acesso encontrem algum espaço na largada dessa corrida maluca que é o mercado de trabalho. É importante que se lembre que mesmo os nascidos e criados em espaços populares não começam essa jornada do mesmo ponto de partida. Inúmeras são as causas para as “improbabilidades” do sucesso desses estudantes, mas talvez a causa de maior exclusão seja o preconceito com relação as suas potencialidades e capacidades de reação.

A sociedade civil organizada também é responsável principalmente, por essa geração de crianças e adolescentes desassistidas pós pandemia.

Não é possível esperar políticas públicas Eficazes, efetivas e inclusivas em todos os âmbitos da Educação em nosso país nos últimos anos. Faz-se imprescindível a colaboração de todos para a construção de uma nova sociedade mais justa e fraterna e com igualdade de oportunidades para essas crianças. Utopia?! Talvez. Mas, como diria Galeano, ela nos ajuda a seguir caminhando.

“A crise da Educação no Brasil, não é uma crise, é um projeto.”, a frase de – Darcy Ribeiro denunciava e agora mais do que nunca ela parece gritar. O desmonte dos órgãos de educação e pesquisa, a desvalorização da ciência e da vida humana... nunca se fez tão importante conscientizar nossos estudantes de que estudar é um ato político.

Você é preguiçosa e desinteressada. Disse a escola a uma de nossas alunas mais brilhantes. A menina chegou até nós depois de passar por diversos profissionais e apesar de a família ter nas mãos um diagnóstico fechado de dislexia, a mãe acreditava na direção da escola onde estudou e pôs a filha para estudar também. Muito esperta e comunicativa, acreditamos fortemente que ela tem grande futuro como comunicadora, mas sofria demasiadamente a ponto de chorar quando precisava ler. Identificamos a dislexia e convocamos a mãe para uma conversa e qual não  foi a nossa surpresa, a mulher já tinha esse diagnóstico dado por um neurologista, mas não levou em consideração porque, segundo a própria mãe, como ela poderia acreditar num médico tão jovem e a diretora da escola, a quem ela devotava grande apresso, categorizou que era preguiça e desinteresse da menina. Conversamos e explicamos o que era a dislexia e como sua filha poderia ser ajudada e após uma série de intervenções criativas a adolescente já se sente segura e confiante, suas notas subiram, embora, todos os nossos alunos saibam que as notas não os definem. Ela escreveu um lindo texto para o nosso ebook anual.

Seu filho não quer nada. Só anda com quem não presta, a senhora abre o seu olho. Qualquer hora vou ver ele na “boca”. Essa foi a sentença de uma explicadora local sobre o aluno mais gentil e interessado que tivemos por aqui nesses últimos10 anos. A mãe procurou uma explicadora a conselho da escola porque o rapaz não estava conseguindo acompanhar as aulas. Após a separação dos pais, a saída do irmão mais velho de casa para tentar a vida em outra cidade e a morte do avô POR covid-19, acontecimentos que se seguiram em um espaço muito curto de tempo, apenas 3 meses, o adolescente estava visivelmente abalado. A explicadora não percebeu, a mãe tampouco. trabalhadora, em plena pandemia a mulher precisou se expor ao transporte público lotado para levar o pão para casa. Além desse e do outro que foi embora, ela tem mais um pequeno e pra variar, luta na justiça pelo direito à pensão das crianças. A saúde mental ainda é um tabu nos espaços populares. “É frescura. Pobre não tem depressão, isso é doença de rico. A gente não tem tempo pra essas besteiras não.“ Nos disse essa mãe quando a chamamos para uma conversa. Convencer e explicar o que é a depressão e a necessidade de buscar ajuda para seus filhos e ela mesma foi a parte mais difícil, mas conseguimos. Hoje, nosso aluno está recebendo acompanhamento psicológico, não só ele como toda a família e seus olhos brilham a cada boa nota conquistada. Já voltou a sonhar, disse que quer ser cientista e encontrar a cura das doenças.

Você quer estragar o meu bebê!! Gritou alterada a mãe de um de nossos alunos durante a reunião que solicitamos para conversar com a família sobre tudo o que havíamos identificado durante os primeiros dois meses de aula com o menino. A criança tinha 9 anos e tinha uma fala infantilizada demais para a sua faixa etária com trocas importantes na pronuncia como nos fonemas /p/ e /b/, /r/ e /l/ e /t/ e /d/. Identificamos também a baixa visão, conseguimos um atendimento com o oftalmologista e o profissional diagnosticou o glaucoma congênito do menino. Além de outros aspectos que nos fazem crer que o aluno tem alguma outra questão que a família não aceita e por isso não busca ajuda-lo. Apesar de todas essas adversidades, conseguimos alfabetiza-lo, a partir de um material adequado, com letras ampliadas e apoio digital com o uso de jogos e recursos que o computador nos proporcionou.  Como se não bastassem as boas notas e a visível alegria estampada no seu rosto por tantas superações, nosso aluno diz que o que ele mais adora na vida é ler. Ele gosta de ler para os amigos de classe que ainda não conseguem e os motiva: “você vai conseguir também, cara.”

A falta de conhecimento de alguns distúrbios de aprendizagem e a não aceitação desses fatos muitas vezes retarda o diagnóstico correto e dificulta a vida escolar e social de algumas crianças. O caso a seguir é de um aluno que está conosco há 4 meses. Criança de 11 anos, chegou analfabeta, de estatura inferior a correspondente para a idade, extremamente inquieta, vocaliza sons altos quando é tocado ou se tocamos algo que lhe pertence. A mãe disse que a escola pede para que ela procure ajuda para o garoto desde o primeiro ano. Hoje ele está no 5º ano. Nossa suspeita é de autismo, mas a mãe segue se recusando a buscar atendimento. Após alguns meses de muita pesquisa e trabalho, conseguimos, através da consciência fônica, deixa-lo em estágio silabante e o aluno se sente feliz ao estar conosco, e isso é perceptível mesmo sem o contato visual que ele não emite, mas notamos nos detalhes. Já nos permite tocar as suas mãos. Seguiremos tentando ajudar essa mãe E CONSEQUENTEMENTE O NOSSO ALUNO.

Durante a pandemia da COVID-19, muitos foram os casos de famílias que nos procuraram por falta de acesso a internet ou mesmo por não terem um bom smartphone para ajudar os seus filhos. Uma dessas crianças que atendemos aqui, além dessa situação de extrema pobreza, tinha, como grande parte das crianças e adolescentes que passam por aqui, uma sentença arrasadora e um histórico de violência sofrido na escola: assédio moral e bullying. A mãe chegou dizendo que a professora no grupo de WhatsApp disse que a sua filha não tinha jeito. Que a menina não tinha futuro e que desde o 3º ano já tinha percebido que “a sua insuficiente capacidade intelectual era hereditária. “A mãe não sabia o que significava “hereditária”. Não comentarei o áudio dessa docente concursada, mas é lamentável imaginar que tantas crianças estão à mercê de tão sórdidos profissionais e que isso pode influenciar as suas vidas. Que criança amável e esperta. Nada tem a ver com a triste figura desenhada pela tal “colega”. Prototípica, a menina só não conseguia acessar a plataforma por falta de equipamentos que a possibilitasse o acesso. Uma leve dificuldade de leitura, mas que era só pela falta do hábito. As nossas rodas de leitura ajudaram e hoje ela lê com fluência. As notas também melhoraram e foi confiante a Olimpíada de Matemática desse ano. Ela descobriu a pouco tempo que existe uma faculdade de gastronomia e nos disse que após o curso quer ser professora da faculdade para ensinar a todo mundo a fazer as receitas de sua mãe.

A pobreza, a fome causada pelo desemprego durante esse período pandêmico, a depressão e outras dificuldades e distúrbios de aprendizagens não identificados e cuidados com a devida atenção e a violência que nos circunda nesse território são motivos mais que suficientes para que a sociedade rotule essas crianças como fracassadas ou improváveis, mas nós não acreditamos nisso. Acreditamos na força e potência geradora do AMOR.

“Amar é um ato de coragem. O amor é uma intercomunicação íntima de duas consciências que se respeitam. E é porque amo as pessoas e amo o mundo que eu brigo para que a justiça social se implante antes da caridade.“ – Freire

“Você é mais burra que uma porta.” Disse a coordenadora pedagógica da escola particular a nossa aluna que foi levada a secretaria por dar de ombros ao comentário da professora que disse que ela não havia estudado nada para aquela prova e por isso havia tirado nota baixa. A adolescente tem diagnostico de TDAH e exatamente na semana daquela bendita prova seu pai foi preso por furtar um pacote de carne seca no mercado. Acionamos algumas redes de amigos e ele já está em casa. Nossa aluna está feliz agora, nos contou que quer estudar muito para ser advogada.

Como bem disse Rubem Alves em seu ensaio, “Ostra feliz não faz perola” “A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. “

E não existe maior beleza que ver nossos alunos começando a entender que estudar, principalmente, porque conhecemos e vivemos todas essas adversidades e injustiças sociais, é um ato político e que o improvável, o incerto ou o impossível não pode ser uma condição para as suas vidas.  

 

Ajudem esse projeto que têm se dedicado a levar mais que conhecimento as crianças e adolescentes da Maré, mas também a oportunidade de sonhar e conquistar um futuro diferente e construir, consequentemente uma sociedade mais justa e fraterna.

 

Banco: 290 - PagSeguro Internet S.A.

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