Literatura, Favela e Saúde: minha trajetória
Encontrei essa carta que escrevi em 2018 entre os meus arquivos e decidi compartilhar
Literatura, Favela e Saúde: minha
trajetória
Nasci no Complexo da Maré, zona norte da
cidade, favela vizinha a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e
cercada pelas principais vias da cidade, as Linhas Vermelha, Amarela e a
Avenida Brasil. Apesar dessa proximidade geográfica com o campus, a universidade
pública sempre foi um sonho muito distante para mim e para muitos dos meus
companheiros. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 15 anos, aos 17 já era mãe.
Sabia da importância da educação, não desisti, fui aluna de Educação de Jovens
e Adultos e, por fim, frequentei um pré-vestibular comunitário. Costumo dizer,
quando sou convidada para palestras ou mesas, que fui a menina favelada que
tinha tudo para “dar errado”. O “errado” e o “insucesso” são sinônimos na
favela. Entretanto, em 2008, aos 32 anos, 2 filhos e desempregada, ingressei na
Universidade Federal do Rio de Janeiro para cursar o que tanto sonhei a vida
inteira, Letras.
Desde criança leio e escrevo por
diversos motivos. Lia, como até hoje leio, para me perder nas palavras alheias
e me encontrar nessa construção de leituras. Leio porque a minha vida só não é
suficiente. Escrevo porque sempre senti a necessidade de me expressar, de me
vingar de alguma forma do Sistema. Mas antes disso tudo, escrevia para mandar
cartas ao Nordeste à família dos meus pais, analfabetos da falta de
oportunidades do meu país. Desde cedo, fui exposta a textos orais e narrativas
de beleza ímpar. Há lindeza maior que ouvir frases do tipo: “mãe ainda abotoa
as portas cedo, Dorinha?” ou “Tota deu pra achar que tava maluca, mas é só
doideira da cabeça dela...” e ser “obrigada” a escrevê-las? Essa foi a minha
formação, a palavra literária inconsciente dos seres periféricos que me
rodeavam. Porém, acredito que o que foi fundamental para que aflorasse de vez
esse meu interesse (e escrita) por essa narrativa favelada foi mesmo a minha
passagem pelo pré-comunitário. Foi realmente, um divisor de águas, compreendi o
que é pertencimento e qual a parte que me toca nesse latifúndio.
Uma vez na universidade, escrevi e
publiquei meu primeiro livro, de poesias e contos, intitulado “Claraboia”. A
obra tinha como mote principal a favela, além de outros temas como a saúde
pública, por exemplo. Ouvi de uma professora da universidade que “na favela não
tinha nada de bom”, caloura, eu não sabia como responder a doutora. Resolvi ir
fazer o dever de casa. Tudo o que permeava e permeia esse universo marginalizado
dos territórios de periferia, tornaram-se ainda mais importantes para mim.
Debrucei-me sobre o tema: “literatura de periferia” e um dos artigos que me
“salvou” a vida foi a tese de Érica Peçanha do Nascimento, “Literatura
Marginal: os escritores da periferia entram em cena”, USP 2006. E salvou mesmo,
foi libertador, pois naquela época entrei num processo de depressão e
desenvolvimento de sintomas psicossomáticos por não conseguir “falar” e nem ser
“ouvida” naquele espaço universitário, sobre a cultura, a escrita e beleza do
meu território, a favela. Pode parecer bobagem, mas afirmo, a falta de
representatividade adoece. A partir daquele momento decidi que lutar sozinha
não fazia sentido e que quanto mais favelados alçassem a voz, erguessem a pena,
melhor seria.
Em 2009, após uma chamada pela internet,
numa rede social, organizei e publiquei dois livros. A partir dessas
publicações, surgiu o projeto cultural que criei e coordeno desde então. O
Projeto ALEPA – A Literatura dos Espaços Populares Agora, que tem por objetivo
estimular a produção e publicação poética e ficcional de escritores de favelas
e periferias de todo país. A ideia é trazer à tona a voz daqueles que estão à
margem do cânone literário e registrar, em suas narrativas e poesias, sua
resistência e memória. O projeto também se propõe a promover ações de incentivo
à leitura em territórios periféricos como saraus e festas literárias.
Há mais de 10 anos na luta e na
resistência, sem fomento ou patrocínio, o projeto conta com 5 antologias
publicadas com a participação de algumas dezenas de escritores favelados de
diversas partes do país: “Marginal: contos de periferia”, “Poesia Suburbana:
entre trilhos e versos”, “Singular: o país dos invisíveis”, “Vozes” e
“[Sobre]viver, resistir e lutar”. Cinco livros autorais da coordenadora do
projeto (eu) publicados: “Claraboia”, “Anjos, ventos e quimeras”, "Mármore
branco", “Me deixa jogar” e " A Manuela, o Felipe e a barata",
os dois últimos são livros infantis que fazem parte de uma coleção chamada
“Identidade”. Trata-se de obras com história sobre e para crianças de
favela/periferia. A ideia desta coleção é tratar da representatividade com histórias
alegres e divertidas. No Em março de 2019, o Projeto ALEPA lançou também o
livro do poeta piauiense e morador do Complexo de Manguinhos, Zé Pereira,
intitulado “Flores do mangue" e em abril daquele mesmo ano, o infantil “O
jardim de Emily” de Lúcia Vermon, escritora do Complexo da Maré, mais um da
coleção “Identidade”. Todos os livros, páginas no Facebook, site, capa,
diagramação, artes para a divulgação e etc., sou eu mesma que faço a partir de
recursos disponíveis na internet como os aplicativos: “Canva” e “PhotoScape”,
além do pacote Office (Word, Powerpoint e IDesign).
Enfim, penso que nesses tempos de grande
circulação de ideias através de meios digitais, pensar e produzir literatura,
ainda que em “modo off”, é de fundamental importância para que não se perca a
memória e a riqueza que nós, seres periféricos, temos e que muitas vezes nos
obrigam a esquecer como parte de uma higienização simbólica, mas real, de
“embranquecimento” da nossa história favelada. Nesse sentido, qualquer ação de
promoção e construção de narrativas literárias contribuirá para um território
mais saudável, uma vez que não é possível pensar em saúde sem autoestima e está
sem representatividade. Salve a literatura de favela!
Atenciosamente,
Adriana dos Santos da Silva/ Adriana
Kairos
Muito bom, parabéns, Adriana!!
ResponderExcluirTrajetória guerreira!
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