Literatura, Favela e Saúde: minha trajetória

 Encontrei essa carta que escrevi em 2018 entre os meus arquivos e decidi compartilhar

Literatura, Favela e Saúde: minha trajetória

 Por: Adriana Kairos

Nasci no Complexo da Maré, zona norte da cidade, favela vizinha a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e cercada pelas principais vias da cidade, as Linhas Vermelha, Amarela e a Avenida Brasil. Apesar dessa proximidade geográfica com o campus, a universidade pública sempre foi um sonho muito distante para mim e para muitos dos meus companheiros. Comecei a trabalhar muito cedo, aos 15 anos, aos 17 já era mãe. Sabia da importância da educação, não desisti, fui aluna de Educação de Jovens e Adultos e, por fim, frequentei um pré-vestibular comunitário. Costumo dizer, quando sou convidada para palestras ou mesas, que fui a menina favelada que tinha tudo para “dar errado”. O “errado” e o “insucesso” são sinônimos na favela. Entretanto, em 2008, aos 32 anos, 2 filhos e desempregada, ingressei na Universidade Federal do Rio de Janeiro para cursar o que tanto sonhei a vida inteira, Letras.

Desde criança leio e escrevo por diversos motivos. Lia, como até hoje leio, para me perder nas palavras alheias e me encontrar nessa construção de leituras. Leio porque a minha vida só não é suficiente. Escrevo porque sempre senti a necessidade de me expressar, de me vingar de alguma forma do Sistema. Mas antes disso tudo, escrevia para mandar cartas ao Nordeste à família dos meus pais, analfabetos da falta de oportunidades do meu país. Desde cedo, fui exposta a textos orais e narrativas de beleza ímpar. Há lindeza maior que ouvir frases do tipo: “mãe ainda abotoa as portas cedo, Dorinha?” ou “Tota deu pra achar que tava maluca, mas é só doideira da cabeça dela...” e ser “obrigada” a escrevê-las? Essa foi a minha formação, a palavra literária inconsciente dos seres periféricos que me rodeavam. Porém, acredito que o que foi fundamental para que aflorasse de vez esse meu interesse (e escrita) por essa narrativa favelada foi mesmo a minha passagem pelo pré-comunitário. Foi realmente, um divisor de águas, compreendi o que é pertencimento e qual a parte que me toca nesse latifúndio.

Uma vez na universidade, escrevi e publiquei meu primeiro livro, de poesias e contos, intitulado “Claraboia”. A obra tinha como mote principal a favela, além de outros temas como a saúde pública, por exemplo. Ouvi de uma professora da universidade que “na favela não tinha nada de bom”, caloura, eu não sabia como responder a doutora. Resolvi ir fazer o dever de casa. Tudo o que permeava e permeia esse universo marginalizado dos territórios de periferia, tornaram-se ainda mais importantes para mim. Debrucei-me sobre o tema: “literatura de periferia” e um dos artigos que me “salvou” a vida foi a tese de Érica Peçanha do Nascimento, “Literatura Marginal: os escritores da periferia entram em cena”, USP 2006. E salvou mesmo, foi libertador, pois naquela época entrei num processo de depressão e desenvolvimento de sintomas psicossomáticos por não conseguir “falar” e nem ser “ouvida” naquele espaço universitário, sobre a cultura, a escrita e beleza do meu território, a favela. Pode parecer bobagem, mas afirmo, a falta de representatividade adoece. A partir daquele momento decidi que lutar sozinha não fazia sentido e que quanto mais favelados alçassem a voz, erguessem a pena, melhor seria.

Em 2009, após uma chamada pela internet, numa rede social, organizei e publiquei dois livros. A partir dessas publicações, surgiu o projeto cultural que criei e coordeno desde então. O Projeto ALEPA – A Literatura dos Espaços Populares Agora, que tem por objetivo estimular a produção e publicação poética e ficcional de escritores de favelas e periferias de todo país. A ideia é trazer à tona a voz daqueles que estão à margem do cânone literário e registrar, em suas narrativas e poesias, sua resistência e memória. O projeto também se propõe a promover ações de incentivo à leitura em territórios periféricos como saraus e festas literárias.

Há mais de 10 anos na luta e na resistência, sem fomento ou patrocínio, o projeto conta com 5 antologias publicadas com a participação de algumas dezenas de escritores favelados de diversas partes do país: “Marginal: contos de periferia”, “Poesia Suburbana: entre trilhos e versos”, “Singular: o país dos invisíveis”, “Vozes” e “[Sobre]viver, resistir e lutar”. Cinco livros autorais da coordenadora do projeto (eu) publicados: “Claraboia”, “Anjos, ventos e quimeras”, "Mármore branco", “Me deixa jogar” e " A Manuela, o Felipe e a barata", os dois últimos são livros infantis que fazem parte de uma coleção chamada “Identidade”. Trata-se de obras com história sobre e para crianças de favela/periferia. A ideia desta coleção é tratar da representatividade com histórias alegres e divertidas. No Em março de 2019, o Projeto ALEPA lançou também o livro do poeta piauiense e morador do Complexo de Manguinhos, Zé Pereira, intitulado “Flores do mangue" e em abril daquele mesmo ano, o infantil “O jardim de Emily” de Lúcia Vermon, escritora do Complexo da Maré, mais um da coleção “Identidade”. Todos os livros, páginas no Facebook, site, capa, diagramação, artes para a divulgação e etc., sou eu mesma que faço a partir de recursos disponíveis na internet como os aplicativos: “Canva” e “PhotoScape”, além do pacote Office (Word, Powerpoint e IDesign).

Enfim, penso que nesses tempos de grande circulação de ideias através de meios digitais, pensar e produzir literatura, ainda que em “modo off”, é de fundamental importância para que não se perca a memória e a riqueza que nós, seres periféricos, temos e que muitas vezes nos obrigam a esquecer como parte de uma higienização simbólica, mas real, de “embranquecimento” da nossa história favelada. Nesse sentido, qualquer ação de promoção e construção de narrativas literárias contribuirá para um território mais saudável, uma vez que não é possível pensar em saúde sem autoestima e está sem representatividade. Salve a literatura de favela!

Atenciosamente,

Adriana dos Santos da Silva/ Adriana Kairos


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