Las Canciones de Cuna



 Las Canciones de Cuna

Por Adriana Kairos

               A maternidade e o trabalho, a pandemia e a pobreza, as mulheres trabalhadoras, seus filhos e as canções de ninar. Quantos mundos possíveis e extraordinários podemos inferir a partir destas palavras? E quantas palavras serão possíveis traduzir nos solfejos de mães operárias a pôr seus filhos para dormir?

Largas e dispendiosas são as discussões acadêmicas sobre a relação do homem com o trabalho, o homem e o capital e tudo mais. Há anos essa discussão se mantem em voga e não é dispensável o assunto, ao contrário, é importantíssimo falarmos a respeito sobretudo a partir das novas formas de relação com o trabalho no século XXI, e principalmente durante e após a pandemia de COVID-19 que trouxe à mais famílias a nova modalidade laboral do "home-office", o sub emprego à outras e a mais absoluta miséria à maioria.

Nesta perspectiva, trago uma singela reflexão sobre algumas canções de ninar que dividi com meus alunos da Oficina de Espanhol, Españolito Latino - Lengua, Historia y Cultura. Na ocasião, trouxe à aula a letra e a canção folclórica recompilada por Atahualpa Yupanqui e interpretada pela voz da América Latina: Mercedes Sosa, "Duerme Negrito", para iniciarmos uma conversa a respeito da relação que algumas canções de ninar estabelecem com a mãe trabalhadora e seus filhos. E por minha turma se tratar de crianças entre 10 e 12 anos, como estratégia didática, criei com eles um grupo no aplicativo WhatsApp para sempre postar um "teaser" do assunto que discutiremos em classe. Assim, a turma já sabia que falaríamos sobre "Las canciones de cuna", pois deixei um recado convocando a todos ao encontro e postei também uma outra música de dormir da colombiana folclorista Marta Gomez em companhia da dupla Las Inéz, “Mi Muñeca”. A ideia era criar um ambiente mais afável para se tratar da dureza por trás dessas canções.

Elegi “Duerme negrito” propositalmente para fazer um paralelo com a nossa “Nana neném”. É impressionante observarmos o quanto e como estas canções estão impregnadas de imagens semelhantes no imaginário coletivo e ancestral dos povos trabalhadores latinos americanos e quiçá do mundo. E, talvez, o mais importante, como essas ilustrações seguem vivas e mantidas até hoje na intimidade e na solidão materna da hora de ninar os pequeninos. O apelo para que seu filho durma traz consigo um cansaço corporal dessa trabalhadora que em geral está sempre ocupada e vigilante.

“duerme, duerme, negrito

Que tu mama está en el campo...”

...papai foi pra roça e mamãe foi trabalhar.”

O cansaço desta mulher é tão urgente e intenso, que ela, na tentativa desesperada de lograr alguns instantes de repouso para o seu corpo maltratado pela lida e pela vida, ameaça o bebê recorrendo a entidades místicas.

“...Y si el negro no se duerme, viene el diablo blanco y zaz! Le come la patita...”

“Nana neném que a Cuca vem pegar...”

No entanto, também é possível perceber o carinho, a ternura e o amor dessa mulher por sua cria. Embora a canção de ninar que conhecemos aqui no Brasil, em português, ser mais curta, contendo apenas quatro versos, estes sentimentos ficam evidenciados na frase “nana neném”, um solfejo delicado com palavras de sílabas nasais que aconchegam e embalam os pequenos acalmando-os e tranquilizando-os no calor do peito materno na vastidão da noite escura.

Por sua vez, a versão interpretada por Sosa de “Duerme Negrito” a expressão de carinho vem também carregada de doces promessas. E quem nunca viveu essa situação, sendo filho ou mãe/pai operário; a expectativa da promessa.

Le va traer codornices para ti

Le va traer rica fruta para ti

Le
va traer carne de cerdo para ti                                                                                                                           

Le va traer muchas cosas para ti...

Porém, a condição simples e única que essa mulher impõe ao seu “negrito” é a de que durma, pois afinal ela tem trabajado duramente, quem sabe até dia e noite, sábados, domingos, feriados e dias santos, ainda mais agora na pandemia. Mulheres, mães, muitas arrimos de família tomadas da responsabilidade de não permitir que nada falte aos seus filhos, têm praticado a tal “reinvenção” mascarada de subempregos ou ilusórias promessas de empreender sem ter o mínimo para si e para os seus, crendo na epifania do Sistema de que “VAE” dar certo. Daí ela continua ”trabajando sí, trabajando y va de luto” Não é qualquer mulher, não é qualquer mãe, é uma trabalhadora enlutada que pode ter perdido seu companheiro, seus entes queridos para a Covid-19. Mas ela segue “trabajando sí, trabajando y no le pagan”. A mãe que nina seu filho nos braços cansados também tem a cabeça cheia de preocupações. Com quê pagará as contas? Ela precisa que seu bebê durma para que ela pense em como não ser despejada, por exemplo. E ela não tem saída e continua “trabajando sí, trabajando y va tosiendo”. Buscando uma colocação, a caminho de algum subemprego ou mesmo tentando reinventar-se, essa mãe trabalhadora circula pelos ônibus da cidade que não testa, que não fiscaliza o cumprimento das medidas sanitárias e vacina a conta gotas planejando um breve carnaval, mas essa mulher está doente e sem assistência médica ela vai por seu “negrito chiquitito... í, trabajando sí.”

A reflexão sobre Las Canciones de Cuna com meus alunos foi intensa, mas muito bonita. Houve uma identificação imediata com as personagens envolvidas, a mãe e o filho. Sendo este um bebê ou um pré-adolescente, como foi importante conversarmos sobre essas coisas numa classe de língua, história e cultura do espanhol em território latino, e principalmente, em território periférico. E como mencionei no início deste texto: trabalho com crianças e eu não poderia encerrar a aula de outra forma que não fosse com uma sincera tentativa de abraçá-los, ainda que apenas através de uma canção. Ouvimos, lemos, traduzimos “Mi Muñeca” que postei no grupo do Whatsapp no dia anterior a aula, e cantamos:

“No me llore mi vida, que se su mama la cuida y la aleja de ese mal.                                                             

Non le va pasar nada de noche la virgen la bendice y la guarda.”

Comentários

Postagens mais visitadas